12 janeiro 2010

O Insecto Seco



O insecto seco gostava de voar pela casa. Esperava que a calma da manhã trouxesse o silêncio para sair da caixinha de fósforos onde estava guardado e voar livre. O seu sítio favorito era a prateleira dos livros de filosofia e o pontinho azul da televisão que ficava aceso quando desligavam o aparelho. Gostava de se pôr em frente dele para ficar azul e fingir que era um escaravelho egípcio. Sabia que não podia deixar marcas das suas escapadelas clandestinas e por isso apagava as minúsculas pegadas que deixava no pó dos móveis com as asas. Sabia também que se fosse à cozinha podia sempre encontrar migalhas de pão duro no fundo do cesto, as suas favoritas. E ali ficava feliz, a rata-las, enquanto pensava que afortunado era em ter morrido naquela casa e em se ter tornado num insecto de estimação, ainda que involuntariamente, ainda que morto. Protegido do apodrecimento, poderia viver ali para sempre. E rodopiava feliz, a cantarolar. Visitava a sua amada, uma borboleta de plástico rosa com mil tons nacarados nas asas, a mais bela e perfeita de todas as criaturas. Depois ía até às janelas e olhava demoradamente o mundo lá fora. Via os temíveis e vorazes pássaros a perseguirem os da sua condição. Via os humanos que iam e vinham nas suas vidas atarefadas, dentro das suas naves ou a pé. Observava outros bichos num frenesim de actividades interessantes. Por vezes tinha a sorte de haver pela casa um livro aberto esquecido. Aí deleitava-se a ler as coisas mais extraordinárias, caminhando pelas linhas com as suas patinhas delicadas. Sabia que tinha de ter cuidado com as horas e já conhecia o relógio e a sua utilidade. Ao fim da tarde, dava um último volteio rodopiante, um último voo rasante aos candeeiros, um último beijo apaixonado à sua borboleta, e um último olhar à casa. A sua casa! Sorria, ditoso, e voltava a meter-se na sua caixinha, tendo o cuidado de se colocar na mesma posição em que tinha sido deixado da última vez, não fosse o ser feminino que o guardara precisar dele essa noite para o fotografar e achar estranho estar noutra posição. Sabia que era exagero, mas nunca se sabe. E era tão feliz ali como nunca fora. Não queria arriscar. Era um preço justo a pagar pela isofismável perfeição de vida que tinha.